sexta-feira, 2 de novembro de 2012

África e o Brasil Africano


SOUZA, Marina de Mello e. África e Brasil africano.
São Paulo: Ática, 2006, 175 p.

José Alexandre da Silva
Professor de História do Ensino Fundamental e Médio Secretaria de Estado de
Educação do Paraná (SEED-PR)
E-mail: alexandre875@hotmail.com


“África e Brasil Africano” trata-se de uma bela introdução
à história da áfrica, que tem haver com o Brasil, escrita
por Marina de Melo e Souza, professora de História da
África da Universidade de São Paul o e estudiosa da
cultura afro-brasileira. Num contexto em que a Lei 10.639
torna obrigatório o Ensino de História Africana e afro -
brasileira a obra ganha grande importância e vem ajudar a
preencher uma lacuna no mercado editorial sobre o
assunto. A presença, no processo editorial, do nome de
Alberto da Costa e Silva, nosso mais respeitado estudioso
de História da África, só vem trazer mais credibilidade à
edição da obra em discussão. Um livro que pode servir não apenas para professores e
alunos que têm de se debruçar sobre a história dos afro-brasileiros nos bancos escolares,
como também para quem quiser saber mais sobre a importância da história da África e
da contribuição dos africanos na formação do nosso país.
A escrita do texto, realizada com clareza, é eficazmente concatenada com
informações atualizadas da produção acadêmica mais recente sobre o tema, além de
trazer informações tiradas diretamente de fontes históricas como processos inquisitoriais,
relatos de viajantes e processos criminais. Além de as pecto gráfico não deixar a desejar,
dando um visual bastante agradável ao texto, o livro é repleto de mapas, fotografias,
pinturas e gravuras criteriosamente referenciados ao final da obra. Outro recurso utilizado são as notas de rodapé, dando o significad o de alguns termos específicos que poderiam
confundir o jovem leitor. Já os boxes separados dos textos inserem descrições e
comentários pertinentes que podem ser saboreados no momento em que o leitor melhor
aprouver. O livro também vem acompanhado de um ma nual de exercícios com o objetivo
de facilitar o trabalho do professor em sala de aula e a assimilação dos estudantes.
Como pontua a autora, “Abordar conteúdos que trazem para a sala de aula
história da África e do Brasil africano é fazer cumprir nossos gr andes objetivos como
educadores: levar à reflexão sobre a discriminação racial, valorizar a diversidade étnica,
gerar debate, estimular valores e comportamentos de respeito, solidariedade e tolerância
(...) levantar a bandeira de combate ao racismo e às di scriminações que atingem em
particular, a população negra, afro-brasileira e afro-descendente.” No afã de realizar tais
objetivos a obra vai ser dividida em seis capítulos: 1) A áfrica e seus habitantes, 2)
Sociedades africanas, 3) Comércio de escravos e e scravidão, 4) os africanos e seus
descentes no Brasil, 5) O negro na sociedade brasileira contemporânea e 6) A África
depois do tráfico de escravos.

No primeiro capítulo do livro, a autora vai descrever os aspectos geográficos do
continente africano enfatizando a importância dos rios ao redor dos quais surgiram as
primeiras sociedades complexas. No segundo capítulo, vai ser trabalhado como se
dividiam as sociedades africanas, das mais simples às mais complexas, seguido de uma
breve descrição dos principais reinos. Nesse ponto fica marcado no texto a importância
que tinham os chefes nessas sociedades, desde os chefes de família até os das aldeias e
dos reinos e confederações. A autora também da destaque a um aspecto de suma
importância na constituição das soc iedades africanas, o sobrenatural. Vejamos: “(...) nas
sociedades africanas (...) toda a vida na terra estava ligada ao além, dimensões que só
especialistas, ritos e objetos sacralizados podiam atingir” (p.44).
O terceiro capítulo é um ponto alto da obra, uma vez que a autora vai dissecar
como funcionava a escravidão no continente africano, antes e depois da chegada dos
europeus, como esses teceram relações com os chefes locais para conseguir cativos,
como esses eram capturados, transportados e comercializ ados. Segue também um
conceito apropriado do termo escravidão: ”(...) situação na qual a pessoa não pode
transitar livremente nem pode escolher o que vai fazer (...) pode ser castigada
fisicamente e vendida caso seu senhor ache necessário; (...) não é vist o como membro
completo da sociedade em que vive, mas como ser inferior e sem direitos (...)” (p. 47).


Já no quarto capítulo, amparada na brilhante produção acadêmica sobre
escravidão no Brasil desde a década 1980 até nossos dias, a autora vai expor de for ma
agradável, porém, rigorosa as principais regiões fornecedoras de africanos escravizados
para a colônia portuguesa, como esses se integraram ao seu novo mundo, como se
relacionaram com seus senhores e também companheiros de destino mesmo esses não
sendo nada conhecidos. Tendo que aprender uma nova língua, resistindo através da
rebeldia, matando o senhor ou o feitor e se aquilombando, implementando formas
veladas de resistência, mas não menos valorosas quanto às já citadas, tecendo laços de
família e de compadrio, criando novas formas de expressão religiosa e de arte, enfim
longo foi o caminho dos escravos até a liberdade.
No quinto capítulo, Marina de Melo e Souza vai construir uma imagem bastante
acurada sobre o negro na atual sociedade brasileira. Vale apontar aqui a superação da
idéia de raça, a contribuição dos africanos nas artes plásticas, na religião e na música.
Também é importante frisar a visão da autora sobre as ações afirmativas que
recentemente vêm sendo implantadas na sociedade brasileira: “( ...) a garantia do acesso
a posições às quais os afro-brasileiros estiveram sistematicamente excluídos é um começo
na conquista de condições mais igualitárias para o desenvolvimento de todas as
pessoas, independente de suas origens étnicas ou sociais” (p.144).


O Sexto e último capítulo trata da ocupação colonial do continente africano que
veio acontecer depois da extinção do tráfico atlântico num momento em que a importação
de mão de obra já não era o que mais interessava ás principais potências européias, mas
sim a ocupação e domínio de um continente quase desconhecido e cheio de riquezas a
oferecer na forma de matéria prima barata ao mundo industrial. A descolonização do
continente, depois da segunda metade do século XX, abriu espaço para guerras
fratricidas de luta pelo poder que deixaram suas marcas até os dias de hoje. Para
completar o quadro, temos o surgimento do vírus HIV que veio como um fragelo para o
continente que tenta se recompor. Para a autora, “(...) o grande desafio das sociedades
africanas é manter o respeito à pluralidade e á diferença sem se fechar para as
novidades que podem trazer benefícios ás pessoas” (p.169).
Mesmo nesse texto de valor, podemos perceber que a autora não consegue
fugir, em pontos bem específicos, de formulações que já presenciamos de longa data nos
manuais escolares e revelam nossa perspectiva, ainda, mais européia que africana.
Nelas o europeu aparece como sujeito que contornou o continente que nesse momento

aparece descrito como uma barreira. Barreira essa, que va i sendo superada em cada
momento histórico que determinado ponto é alcançado. Assim, o Cabo do Bojador é
contornado em 1434, em 1445 é construída a primeira fortaleza que servia de base para
o comércio com os povos locais e em “Bartolomeu Dias chegou ao ex tremo Sul do
continente em 1489, e Vasco da Gama contornou a África e foi até a Índia em 1498 (p.
28)”.
Detalhes à parte, acreditamos que esse texto merece ser lido e utilizado sem
receios e mesmo já se tendo decorrido dois anos da data de sua publicação, podemos ter
a certeza de que África e Brasil africano trata -se de uma contribuição literária importante
para um país que durante muito tempo tentou mascarar, ocultar ou esquecer suas
origens.




novos temas nas aulas de história

por Raquel dos Santos Funari

Carla Bassanezi Pinsky, org. Novos temas nas aulas de História. São Paulo, Editora Contexto, 2009, 224 pp., ISBN 9788572444187.

Sobre a autora[1]

A Editora Contexto tem larga tradição na publicação de livros voltados para o ensino de História. Alguns clássicos, como Cem Textos de História Antiga, de Jaime Pinsky, são best-sellers que formaram gerações de professores de História. Nos últimos anos, diversos títulos trataram do estado da arte de diversos aspectos da temática, com obras sobre o cinema ou os quadrinhos no ensino de História, assim como um volume que, em pouco tempo, tornou-se referência, História na Sala de Aula, organizado por Leandro Karnal. O mais recente lançamento volta-se para os novos temas, com contribuições de estudiosos ligados a diversas instituições de renome, como Unicamp, USP, UFSC, Unesc, PUCCamp, Uniban, UFPE, UFRJ, UEMG, UFPR, PUCSP, entre outras. O resultado não poderia ser melhor.

Carla Pinsky começa por ressaltar que os autores destacam-se por usa preocupação com o ensino de História, algo nem tão comum nas universidades, mas muito necessário. Afinal, a grande maioria dos alunos dos cursos superiores de História torna-se professores e assume, por isso mesmo, uma tarefa das mais relevantes: a educação das crianças . Kalina Vanderlei Silva abre o volume, com a desmistificação do uso da biografia. O trabalho com biografias em sala de aula justifica-se pelo apelo do gênero biográfico e pelo papel que pode desenvolver como representação do contexto histórico. A organizadora do volume trata de um tema da mais alta relevância: as relações de gênero. Pinsky mostra como o termo gênero refere-se a uma construção cultural e histórica das percepções sexuais.

Marco Mondaini volta-se para os direitos humanos, tema tão relevante, quanto pouco explorado. Em minha prática como professora do ensino fundamental e médio, tenho atuado em discussões sobre as relações internacionais e as diferenças de relativas aos direitos humanos. O Programa das Nações Unidas para as escolas médias, conhecido no Brasil pela sigla MONU-EM (Modelo das Nações Unidas para o Ensino Médio) mostra a relevância da cidadania como temática. Marcos Napolitano, veterano estudioso do ensino de História e autor de diversos livros, trata da cultura. Lembra que a cultura traduz-se num complexo que envolve produção, circulação e apropriação de sentidos, significações e valores da vida social.

Fábio Pestana Ramos apresenta um objeto de reflexão pouco considerado, mas de imenso potencial: a alimentação. Nada mais cotidiano e familiar do que a comida e toda a sociabilidade associada. Em direção oposta, Pietra Diwan mostra a relevância de um aspecto que costuma passar despercebido: o corpo humano. Parece tão natural, que não percebemos, muitas vezes, o caráter histórico do corpo. O uso das mãos na alimentação, mostra Diwan, varia no decorrer da História e mesmo, em determinado momento histórico, de acordo com as classes sociais. O uso de talheres, introduzido pela Revolução Industrial, a partir do século XVIII, ligou-se à burguesia. Já a utilização das mãos nos restaurantes de comidas rápidas (fast food) resultou do avanço social das classes laboriosas. Tudo isso pode ser bem explorado na sala de aula.

Marcos Lobato Martins elabora os variados aspectos da História Regional, com ênfase nas formas de expressão como o artesanato, a música e a arte. Sílvia Figueirôa dedica-se a uma questão tanto mais relevante, quanto pouco explorada: a ciência e a tecnologia. Na minha experiência, posso imaginar o motivo disso. Os professores de História não estão acostumados a tais aspectos da vida humana e, por isso mesmo, a historicidade das técnicas sempre é um tanto delicada. Figueirôa mostra, contudo, como podemos inserir tais preocupações em temas como o Iluminismo em Portugal e no Brasil, ao tratar do patriarca da independência, José Bonifácio de Andrada e Silva.

Carlos Renato Carola consegue relacionar a nossa disciplina ao meio ambiente, questão crucial da época em que vivemos. A partir da idéia de crise ambiental, Carola volta até a Grécia Antiga e Platão, sem esquecer o cinema, para mostrar a relevância do tema. Por fim, Marcus Vinícius de Morais conclui o volume com questões identitárias. A História Integrada permite observar como a dicotomia entre História do Brasil e História Universal acaba por dissociar aspectos interligados. Pergunta Morais, onde termina a Europa e onde começa o Brasil? Não há como separar.

O livro apresenta uma organização uniforme e que facilita muito o seu uso pelo professor. Os capítulos apresentam boxes, no decorrer do capítulo, assim como indicações muito concretas de peças de teatro, ópera, romances, biografias, contos, filmes, além de sugestões bibliográficas comentadas. A estrutura da obra permite seu uso tanto diretamente pelos professores do ensino médio e fundamental, como nos cursos superiores de História. Obra de referência, já pode ser considerada leitura obrigatória para todos os interessados pelos rumos do ensino da disciplina.

[1]Licenciada em História, Mestre e Doutora em História pela Unicamp.

Publicação Historia e Historia - UNICAMP

Diáspora Negra no Brasil


Assunto: História

O livro Diáspora negra no Brasil, organizado pela historiadora Linda Heywood,
professora de História da África e Diáspora Africana na Universidade de Boston, constitui
uma referência no conjunto das obras sobre a África Central traduzidas no Brasil.
Composto de seis artigos, divididos em dois conjuntos e distribuídos em um total de 222
páginas, a obra em questão apresenta um grupo de informações inovadoras quanto ao
método e às fontes utilizadas.
No primeiro capítulo – “África Central durante a era do comércio de escravizados,
de 1490 a 1850” – de autoria do renomado historiador Joseph Miller, objetiva-se
compreender os centro-africanos que chegaram ao novo mundo, a partir de quatro
referenciais; em primeiro lugar, atentar para a forma como os povos de língua banto
compreendiam a si mesmos e os locais em que viviam do século XVI ao XIX; em segundo,
procura-se compreender como lidaram com a experiência da escravização e o trauma da
travessia da chamada passagem do meio. Em terceiro, atentar para a forma como
relembraram as experiências passadas, quando já estabelecidas no Brasil, no Caribe e na
América do Norte. Por fim, é preciso analisar a forma como encontraram um novo sentido
para a vida nas Américas, junto com indivíduos escravizados de origens diferentes e sob a
influência de desafios específicos da sobrevivência que variavam de continente para
continente, variando conforme o século.
Em “Religião e vida cerimonial no Congo e áreas Umbundo de 1500-1700”, o
historiador da Universidade de Boston, John K. Thornton analisa os traços primordiais da
religião da África Central no período correspondente ao comércio de escravos, inovando a
partir do pressuposto metodológico adotado. Em oposição à maioria dos historiadores que
realizaram análises semelhantes a partir da etnografia da África Central moderna, John K.
Thornton reconstitui as idéias religiosas a partir da documentação escrita no período, isto é,
utiliza-se em abundâncias das fontes primárias, o que lhe faculta uma melhor compreensão
da acentuada variação regional e temporal existente.
Objetiva-se, ainda, reconhecer a presença e a importância do Cristianismo,
conduzido ao Reino do Congo através do papel desempenhado pelos missionários
portugueses, fator muitas vezes compreendido por alguns historiadores com um fenômeno
restrito às classes abastadas.
Neste contexto, destaca-se o vasto material produzido pelos missionários, homens
relutantes não somente às idéias, mas também às práticas religiosas africanas, exigindo,
assim, da parte do historiador, a releitura de visitantes europeus dos séculos XVI e XVII.
Para este autor, apesar das diferenças, é possível delinear um quadro com crenças
“amplamente aceitas”. Entre estas crenças podemos destacar a aceitação de um grande
número de seres espirituais habitantes de um outro mundo. Nas regiões de fala umbundo,
por exemplo, as divindades recebiam o nome de Kilundu e geralmente eram tidas como
Deuses. Já na região do Congo, as práticas relativas aos ancestrais resistiram aos
ensinamentos cristãos, principalmente no que diz respeito à ressureição dos mortos. Para
eles, o cuidado com os ancestrais era sinônimo de boa sorte e saúde. Por sua vez, o
abandono e a negligência eram caminhos para as doenças e as más sortes.
Segundo John K. Thornton, tanto os africanos quanto os europeus acreditavam na
existência de feiticeiros, causadores de danos através de recursos considerados
sobrenaturais; no entanto, ambas as tradições – africana e européia – possuíam um modo
próprio de lidar com a questão. Os europeus advogavam a existência de uma boa feitiçaria,
praticada pelos próprios profetas, videntes e adivinhos. Já os africanos rotulavam o mal
desvinculado do sobrenatural, estabelecendo uma relação entre ele e a intenção dos vivos.
Exemplifica-se com o caso dos líderes imbangalas, praticantes declarados do canibalismo,
prática “fortemente” relacionada à feitiçaria.
Em suma, a conversão ao cristianismo não significou uma profunda mudança
religiosa. Ainda no tempo de Cavazzi, identificam-se práticas relacionadas aos ancestrais. O
que houve foi um esforço por parte dos missionários em integrar a percepção dos
congoleses a respeito dos ancestrais às datas comemorativas cristãs. Em suma, o
cristianismo, sem dúvida, alterou a religião original, porém, sua estrutura se manteve, não
havendo significativas diferenças entre os cristãos e os não-cristãos.
No terceiro capítulo desta coletânea – “De português a africano: das culturas
atlânticas crioulas no século XVIII”, a historiadora Linda Heywood adota como fio
condutor o cerne das observações feitas por John K. Thornton. A autora esclarece que o
“processo de interpenetração religiosa” estava presente em outros setores da cultura
centro-africana, caracterizando as relações afro-portuguesas no século XVIII.
O objetivo deste capítulo é demonstrar que o processo de crioulização ocorreu de
mão-dupla, por um lado, surtiu efeito sobre a cultura e os povos africanos, por outro,
promoveu a africanização dos colonizadores de origem portuguesa.
Segundo Linda Heywood, durante o século XVIII era evidente o processo de
crioulização vivenciado pelos portugueses no reino de Angola e no Reino de Benguella. As
relações sexuais existentes entre homens europeus e mulheres africanas corroboram a
afirmativa acima e legitimam simultaneamente o aumento da população afro-lusitana. A
interpenetração entre estes dois grupos causou reflexos também na esfera cultural. As
práticas, os rituais religiosos, a língua, a culinária, a dança, a música, assim como as outras
expressões culturais, refletiram esse processo de crioulização, evidente aos olhos das
autoridades de caráter secular e religioso da época.
No capítulo quarto – “Centro-africanos no Brasil central, de 1750 a 1835” – a
historiadora Mary Karasch se propõe a explicar o processo de formação do quilombo de
Kalunga, localizado no atual estado de Goiás. Segundo esta autora, nas origens do processo
formativo encontra-se o ouro. Os africanos, que para lá foram enviados, possuíam como
destino certo as minas de ouro da Capitania.
Com base em documentos oficiais portugueses correspondentes ao final do período
colonial e aos anos iniciais do Império (1780-1835), a destacar as listas de residência, a
autora traça um retrato do quilombo do Kalunga e de seus habitantes, confrontando os
dados obtidos com outras regiões do país.
Além dos censos, a autora utilizou como fonte documental os registros de batismo
e de morte, os registros de impostos, os inventários de Hutim, alforrias e as irmandades
com o objetivo de localizar os africanos que viveram no Brasil central no final do período
colonial. Porém, antes disso, a autora se detém na compreensão do comércio interno de
escravos entre os portos do litoral e a capitania de Goiás.
O tempo passou, e segundo a autora, tradições e memórias do tempo da escravidão
dos centro-africanos ainda se faziam presentes na Capitania de Goiás. Como exemplo cita a
tradição oral em Catalão, no sul de Goiás, onde os congos e os moçambicanos dançavam
as congadas para Nossa Senhora do Rosário, demonstrando assim que as tradições de
Angola e do Congo não foram totalmente esquecidas.
No capítulo seguinte – “Quem é o rei do Congo? Um novo olhar sobre os reis
africanos e afro-brasileiros no Brasil” – a historiadora Elizabeth W. Kiddy dá
prosseguimento à discussão iniciada por Linda M. Heywood. Neste texto, a autora traz à
tona questões que norteiam a produção historiográfica sobre o assunto: comenta as
posições adotadas pelo antropólogo Sidney Mintz e pelo historiador John K.Thornton e
Linda M. Heywood que nos capítulos redigidos para o corpo deste livro afirmam que por
volta do século XVIII a cultura centro-africana já se combinava significamente com a
cultura européia. Portanto, a chegada de centro-africanos escravizados no Brasil
representou a continuação do processo de mistura cultural. O que houve foi uma
adaptação. Ainda, perfazendo um debate de cunho historiográfico, comenta-se a ausência
de clareza em alguns trabalhos onde o termo reinos negros é concebido como sinônimo de
reis do Congo. A partir do final do século XVIII, os reis negros começaram a se denominar
como Reis do Congo. Perdeu-se o sentido étnico e o termo passou a ser utilizado por todo
e qualquer líder de uma comunidade onde estivessem presentes escravos e libertos.
Segundo a autora, a própria compreensão do papel exercido pelo rei do Congo
precisa ser repensado. A generalização do termo explica-se pela compreensão distorcida do
significado da coroação do Rei do Congo. Esta deve ser compreendida como “uma
continuação da cultura centro-africana entre os afro-brasileiros”.
Um bom exemplo é o fato de que em Minas Gerais do século XVIII, a
documentação referente aos quilombos incluía a presença de reis e rainhas como “líderes”
da comunidade. Do mesmo modo, irmandades mineiras, apesar de uma proibição datada
de 1720, elegiam reis e rainhas entre os negros para conduzirem suas organizações. Os reis
das irmandades possuíam poder local e temporal. Exerciam a função de líderes entre os
demais membros da população. Em suma, é possível finalizar estas considerações com o
seguinte questionamento: o que representou a tradição de reis e rainhas entre os afrobrasileiros?
Para Elizabeth W. Kiddy, a continuação de um processo que data dos primeiros
dias da escravidão no Brasil. Representa a vitória na tentativa de se manter viva vinculada
com a África, pois os “rituais ligam os ancestrais da terra natal aos ancestrais brasileiros e africanos e
ao mundo dos espíritos.” E todos nós sabemos quão importante é o papel dos ancestrais no
bojo das culturas africanas.
Explorando ainda mais os aspectos da cultura centro-africana, do mundo visível e
invisível, o historiador Robert Slenes é o autor do último artigo que compõe a coletânea.
Dentre todos os pesquisadores citados, sem dúvida, ele é o mais conhecido entre nós,
brasileiros. Em primeiro lugar, pelos longos anos em que está conosco, mas principalmente
Historiografia da Escravidão, assinalando uma geração de historiadores, entre os quais eu
me incluo, cuja formação acadêmica, desenvolvida nas décadas de 1980 e 1990, voltou-se
principalmente para a exploração documental em busca das famílias escravas.
Neste texto – “A Grande Greve do Crânio do Tucuxi: espírito das águas centroafricanas
e identidade escrava no início do século XIX no Rio de Janeiro” –, o autor relata
e explica a greve realizada pelos escravos em virtude de um crânio de Tucuxi presente na
embarcação em que conduziam no final de dezembro de 1816. A partir do relato do
viajante John Luccock, o autor vai tecendo considerações e conclusões relativas ao
acontecimento, esmiuçando a origem étnica dos cativos, sua complexidade cultural e
origem etnolinguística. Segundo Robert Slenes, o episódio do crânio de Tucuxi é um
exemplo de como os basundis, bampangus e grupos de outras origens puderam descobrir a
África no Brasil.
O texto representa uma incursão no universo sócio-cultural dos povos centroafricanos,
resgatando tradições através de um diálogo com contos folclóricos dos bacongos
e umbundus onde os peixes e os crocodilos aparecem como animais vingadores de todos
aqueles que desrespeitam a natureza.
É preciso não esquecer que os povos bacongo e umbundo forneceram levas
significativas de escravos para a região sudeste do Brasil. Sem contar que dividem um
grupo de idéias relativas aos espíritos da águas desde o século XVI e XVIII.
Para finalizar, deve-se compreender o fio metodológico utilizado pelo autor. Para
Robert Slenes, a análise realizada é uma demonstração da necessidade de se examinar
pressupostos culturais comuns para se entender comportamentos coletivos.
Enfim, a obra em questão apresenta um conjunto de artigos que vão desde a
utilização de dados demográficos para uma melhor compreensão do funcionamento do
comércio de escravos até análises marcadas pela exploração do universo cultural,
permitindo ao leitor o enriquecimento do seu cabedal sobre a situação dos escravos
originários da África Central e suas formas de organização e sobrevivência do outro lado
do Atlântico.
Trata-se de um livro fundamental para uma melhor compreensão do universo
centro-africano no Brasil. Aos autores, renomados pesquisadores de cunho internacional, e
à editora Contexto parabenizamos respectivamente pela elaboração e pela tradução e
publicação da obra.
pela acentuada significância de seus trabalhos, muitos dos quais contribuíram para a Nova
Historiografia da Escravidão, assinalando uma geração de historiadores, entre os quais eu
me incluo, cuja formação acadêmica, desenvolvida nas décadas de 1980 e 1990, voltou-se
principalmente para a exploração documental em busca das famílias escravas.
Neste texto – “A Grande Greve do Crânio do Tucuxi: espírito das águas centroafricanas
e identidade escrava no início do século XIX no Rio de Janeiro” –, o autor relata
e explica a greve realizada pelos escravos em virtude de um crânio de Tucuxi presente na
embarcação em que conduziam no final de dezembro de 1816. A partir do relato do
viajante John Luccock, o autor vai tecendo considerações e conclusões relativas ao
acontecimento, esmiuçando a origem étnica dos cativos, sua complexidade cultural e
origem etnolinguística. Segundo Robert Slenes, o episódio do crânio de Tucuxi é um
exemplo de como os basundis, bampangus e grupos de outras origens puderam descobrir a
África no Brasil.
O texto representa uma incursão no universo sócio-cultural dos povos centroafricanos,
resgatando tradições através de um diálogo com contos folclóricos dos bacongos
e umbundus onde os peixes e os crocodilos aparecem como animais vingadores de todos
aqueles que desrespeitam a natureza.
É preciso não esquecer que os povos bacongo e umbundo forneceram levas
significativas de escravos para a região sudeste do Brasil. Sem contar que dividem um
grupo de idéias relativas aos espíritos da águas desde o século XVI e XVIII.
Para finalizar, deve-se compreender o fio metodológico utilizado pelo autor. Para
Robert Slenes, a análise realizada é uma demonstração da necessidade de se examinar
pressupostos culturais comuns para se entender comportamentos coletivos.
Enfim, a obra em questão apresenta um conjunto de artigos que vão desde a
utilização de dados demográficos para uma melhor compreensão do funcionamento do
comércio de escravos até análises marcadas pela exploração do universo cultural,
permitindo ao leitor o enriquecimento do seu cabedal sobre a situação dos escravos
originários da África Central e suas formas de organização e sobrevivência do outro lado
do Atlântico.
Trata-se de um livro fundamental para uma melhor compreensão do universo
centro-africano no Brasil. Aos autores, renomados pesquisadores de cunho internacional, e
à editora Contexto parabenizamos respectivamente pela elaboração e pela tradução e
publicação da obra.

A África na sala de aula: visita à História Contemporânea


texto de Victor Martins*

A África enquanto um legado cultural, social e espiritual, tendo em vista o processo histórico e político vivido pelo Brasil, a despeito de parte daquilo que ficou soterrado em relação à cultura desse continente. Talvez, se partimos dessa ideia, fique mais claro a relevância da obra da socióloga Leila Leite Hernandez - A África na sala de aula - para a realidade brasileira, sem perder de vista, é claro, o longo caminho a ser trilhado no sentido de dirimir as barreiras e opiniões correntes em relação ao continente africano. Talvez seja desnecessário mencionar a lei 10.639, de 2003, que torna obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, atendendo uma demanda sócio-histórica e, inclusive, política.
            No mais, quando se ouve falar em África, há uma opinião quase predominante na historiografia que consiste em afirmar que a grande contribuição dos africanos para a História Universal foi a partir do tráfico negreiro, muitas vezes, desconsiderando sua filosofia, seus valores, crenças e cosmogonias. Entretanto, como a aceitação do outro implica, sobretudo, na aceitação da sua estética, tem-se os ventos da História ao nosso favor para lembrar que a África não tem recebido o merecido tratamento em grande parte dos estudos acadêmicos e científicos.
O maior exemplo disso é o desconhecimento para com nossas raízes culturais e os preconceitos e pré-noções criadas em relação à cultura africana, equivalendo dizer que as generalidades acerca do continente acabam por esconder particularidades de espaços e vicissitudes de tempos. Basta se perguntar se as etnias koishan, que habitam o deserto do Kalahari, na Botswana, são iguais aos wolofs ou diolas, que vivem nos limites da jurisdição senegalesa? Para além do truísmo da pergunta retórica, a dinâmica histórica mostra que o primeiro passo para quebrar estes paradigmas é através do diálogo. Em face disso, é justamente nessa discussão que a autora se insere.
A obra é prefaciada pelo escritor moçambicano Mia Couto, personalidade de destaque no cenário literário, cultural e, sobretudo, político, além de ser um dos escritores africanos de maior relevância. O autor aceita de bom grado a obra de Leila Leite Hernandez, enfatizando o seu grau de relevância para contestar o olhar enviesado em relação à África, via de regra, concebida como um território homogêneo. Mia Couto contesta, igualmente, a assimilação da identidade dos africanos por meio da questão da raça, que acaba ofuscando os processos históricos e sociais do continente. Na esteira do autor, “a visão europeia do ser africano” provém da genética e não das condições históricas. Daí o sentido da metáfora trabalhada pelo autor, “África: um retrato sem moldura”, ou seja, de um lado há uma forma dos africanos se auto-reconhecerem (retrato) e por outro lado, há a tentativa de enquadramento da Europa em relação à África (moldura). Com essa observação arguta o escritor Moçambicano, que inclusive tem fomentado esses debates por meio de suas obras de ficção, questiona a visão de uma África pré-formatada.
Como não poderia ser diferente, Leila Hernandez parte de uma preocupação contemporânea, no sentido de compreender a África integrando o conjunto de temas de fins do século XIX e meados do XX, desnecessário dizer que esse é um método predominantemente histórico – recorre-se ao passado para melhor compreender o presente.
A despeito do caráter extenso da obra (13 capítulos distribuídos em 678 páginas), é possível dividi-la em quatro partes. Na primeira delas (cap. I, II e III), Hernandez traz à baila alguns preconceitos e pré-noções acerca da África, questionando,  igualmente, a aistoricidade (a-historicidade) em relação ao continente, importante mencionar aqui o olhar enviesado do filósofo alemão Friedrich Hegel (1770-1831), que declarou em suas lições sobre a Filosofia da História Universal, que a África não possuía “interesse histórico próprio, senão o de que os homens vivem ali na barbárie e no selvagismo, sem aportar nenhum ingrediente à civilização”. Desta forma, a autora põe em suspenso conceitos oriundos de uma linha de pensamento ocidental, que perpassa a antropologia funcionalista de Bronislaw Malinowski (1884-1942) e Radcliff-Brown (1881-1955), teoria que consiste em pensar as instituições a partir das suas funções sociais, no mais das vezes, sem levar em contas os aspectos das culturas locais. Reside aí o legado do “fato social” de Émile Durkheim, na sua configuração mais teórica e cientificista, aos trabalhos de Brown. Desnecessário dizer que tais teorias não são nenhum pouco condizentes para a análise das inúmeras etnias presentes em África. Enfim, o conhecimento apronta das suas, visto que a universalidade acabar por esconder as particularidades locais. Conforme diria Léon Tolstoi, “Quer ser universal, cante com a aldeia”.
A autora também alerta-nos acerca do aspecto extremamente colonialista da Conferência de Berlim, em fins do século XIX e início do XX, que partilhou a África entre as potências européias, sem ter em conta as peculiaridades locais, fruto do empreendimento imperialista e neocolonialista que, tempos depois, desencadeou nas duas grandes guerras mundiais. Leila Leite também enfatiza a importância das tradições orais para o estudo da África.
Na segunda parte da obra, é problematizada a questão do colonialismo, tendo em vista os instrumentos de luta de dominação: expansionismo, burocracia colonial e racismo. Aqui as “diferentes cabeças” do empreendimento colonial ganham maiores contornos, considerando-se os distintos tentáculos do colonizador, a partir dos quais a África foi reduzida à fornecedora de matérias primas aos países do centro numa dinâmica extremamente aviltante para com os valores humanos, o que levou Hannah Arendt  a classificar o imperialismo colonial como uma pré-figuração dos fenômenos totalitários do século XX, a exemplo do nazismo e stalinismo. A meu ver, se  Hernandez se apoiasse em Aimé Césaire (Discurso sobre o Colonialismo), cuja obra está presente na bibliografia do livro que se quer resenhado, teria elementos mais consistentes para estabelecer o paralelo entre aquilo que Arendt chamou de “pré-figuração” do totalitarismo na sua configuração nazista e stalinista e o totalitarismo propriamente dito, visto que Césaire faz uma crítica ferrenha à relevância que é dada às atrocidades cometidas no entreguerras em detrimento ao empreendimento neocolonialista em África e nas chamadas periferias do capitalismo, que foi tão violento quanto, isso sem mencionar o grande contingente de africanos que lutaram na linha de frente dos exércitos coloniais, defendendo uma pátria que lhes eram alheia. Lembrando Césaire, “É permitido matar na Indochina, torturar em Madagáscar, aprisionar na África Negra, e reprimir nas Antilhas”. Essa crítica foi escrita em 1955.
Entretanto, Hernandez traz um interessante contraponto, referindo-se aos distintos movimentos de resistência existentes em todo o continente contra as investidas do colonizador, a exemplo da luta dos sudaneses, egípcios e somalis contra o imperialismo britânico.
A parte terceira, que abarca o sexto, sétimo e oitavo capítulo, centra-se no papel desenvolvido pelas elites culturais diante da política e da questão da identidade, processo esse que dá ensejo à formação da consciência nacional, pautando-se em ideias elaboradas por diferentes correntes de pensamentos que foram de encontro aos preceitos engessadas made in Europa. Em diálogo com outros autores, Hernandez mostra como a categoria genérica “raça” foi moldada através de um saber europeu de fins do século XVIII e reforçado no XIX, na esteira evolucionista e do darwinismo social levado a cabo por Herbert Spencer (1820-1903), que aplicou à sociologia ideias provenientes das ciências naturais. A esse respeito, assinala Hernandez:

O significado desse ‘binômio’ composto pelas raças branca e negra não se encerra, é óbvio, nos limites de uma simples antítese. Antes, tem o efeito de inspirar a seguinte dúvida: teriam o branco e o negro a mesma origem? É bom lembrar que essa questão integra o narcisismo europeu e sua busca de fronteiras entre ele e o outro, colocando, portanto, o tema da alteridade” (p.132).

Nesse processo de formação de desenvolvimento de uma consciência nacional, conforme observado pela autora, destaca-se o papel de intelectuais e membros da elite africana, bem como o ganense Kuame Nkrumah (1909-1972), que enxergou na união africana uma possibilidade de superação dos limites impostos pela violência neocolonialista. Daí ser Nkrumah um dos principais articuladores do chamado Pan-africanismo – no seu dizer - “A África para os africanos”. Resumo da ópera: o “pan-africanismo parte da preocupação de constituir uma identidade de destino de um conjunto de povos frente à burocracia colonial e às experiências colonialistas. Face a isto, a partir do ideário pan-africanista, criou-se um série de conferências e congressos para discutir a inserção das nações africanas no cenário internacional, tendo em conta a recomposição política da África pós-Conferência de Berlim. No bojo desse processo surge, igualmente, nos anos 1930, um movimento encabeçado pelos pensadores Aimé Césaire (Martinica), Leopold Sedar Senghor (Senegal) e Léon Damás (Guiana Francesa), que consistiu em pensar a identidade negra a partir de valores comuns fazendo frente ao racismo das instituições francesas do período. Interessante notar que, muito embora, a negritude tenha sido idealizada por intelectuais da diáspora e da África francófona, ela se irradiou para outras paragens. Também é mencionada a Conferência de Bandung (1955) (Conferência Governamental Afro-Asiática), que consistiu no encontro entre nações africanas e asiáticas, onde esses países optaram pelo não-alinhamento, buscando não se inserir na arena bipolar ideológica dominada pelos EUA (1º mundo) e URSS (2º mundo). Advém daí a disseminação do termo terceiro mundo, elaborado anos antes (1952) pelo demógrafo francês, Alfred Sauvy, em artigo intitulado Trois monde, une planète, em alusão ao Terceiro Estado (povo) da Revolução francesa. Em Bandung, os países signatários, a partir de laços assimétricos e interesses comuns, buscaram regulamentar conflitos por meios pacíficos, pensando na representatividade das respectivas nações no cenário internacional. Haja vista que dez anos depois, à conferência se somaram as nações latino-americanas. Esse era o preço a ser pago pelas potências, tendo em vista a forma arbitrária que estas conduziam os conflitos nas chamadas periferias do capitalismo. Na década de 1960, já amadurecido esses diálogos, observa-se o efeito em escala das independências das nações africanas, conforme exposto pela autora na última parte da obra.

*Professor de História da Uniban/Anhaguera da unidade Campo Limpo- Vila Mariana e pesquisador do Cecafro-PUC-SP e da Cinemateca Brasileira.