sexta-feira, 2 de novembro de 2012

A África na sala de aula: visita à História Contemporânea


texto de Victor Martins*

A África enquanto um legado cultural, social e espiritual, tendo em vista o processo histórico e político vivido pelo Brasil, a despeito de parte daquilo que ficou soterrado em relação à cultura desse continente. Talvez, se partimos dessa ideia, fique mais claro a relevância da obra da socióloga Leila Leite Hernandez - A África na sala de aula - para a realidade brasileira, sem perder de vista, é claro, o longo caminho a ser trilhado no sentido de dirimir as barreiras e opiniões correntes em relação ao continente africano. Talvez seja desnecessário mencionar a lei 10.639, de 2003, que torna obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, atendendo uma demanda sócio-histórica e, inclusive, política.
            No mais, quando se ouve falar em África, há uma opinião quase predominante na historiografia que consiste em afirmar que a grande contribuição dos africanos para a História Universal foi a partir do tráfico negreiro, muitas vezes, desconsiderando sua filosofia, seus valores, crenças e cosmogonias. Entretanto, como a aceitação do outro implica, sobretudo, na aceitação da sua estética, tem-se os ventos da História ao nosso favor para lembrar que a África não tem recebido o merecido tratamento em grande parte dos estudos acadêmicos e científicos.
O maior exemplo disso é o desconhecimento para com nossas raízes culturais e os preconceitos e pré-noções criadas em relação à cultura africana, equivalendo dizer que as generalidades acerca do continente acabam por esconder particularidades de espaços e vicissitudes de tempos. Basta se perguntar se as etnias koishan, que habitam o deserto do Kalahari, na Botswana, são iguais aos wolofs ou diolas, que vivem nos limites da jurisdição senegalesa? Para além do truísmo da pergunta retórica, a dinâmica histórica mostra que o primeiro passo para quebrar estes paradigmas é através do diálogo. Em face disso, é justamente nessa discussão que a autora se insere.
A obra é prefaciada pelo escritor moçambicano Mia Couto, personalidade de destaque no cenário literário, cultural e, sobretudo, político, além de ser um dos escritores africanos de maior relevância. O autor aceita de bom grado a obra de Leila Leite Hernandez, enfatizando o seu grau de relevância para contestar o olhar enviesado em relação à África, via de regra, concebida como um território homogêneo. Mia Couto contesta, igualmente, a assimilação da identidade dos africanos por meio da questão da raça, que acaba ofuscando os processos históricos e sociais do continente. Na esteira do autor, “a visão europeia do ser africano” provém da genética e não das condições históricas. Daí o sentido da metáfora trabalhada pelo autor, “África: um retrato sem moldura”, ou seja, de um lado há uma forma dos africanos se auto-reconhecerem (retrato) e por outro lado, há a tentativa de enquadramento da Europa em relação à África (moldura). Com essa observação arguta o escritor Moçambicano, que inclusive tem fomentado esses debates por meio de suas obras de ficção, questiona a visão de uma África pré-formatada.
Como não poderia ser diferente, Leila Hernandez parte de uma preocupação contemporânea, no sentido de compreender a África integrando o conjunto de temas de fins do século XIX e meados do XX, desnecessário dizer que esse é um método predominantemente histórico – recorre-se ao passado para melhor compreender o presente.
A despeito do caráter extenso da obra (13 capítulos distribuídos em 678 páginas), é possível dividi-la em quatro partes. Na primeira delas (cap. I, II e III), Hernandez traz à baila alguns preconceitos e pré-noções acerca da África, questionando,  igualmente, a aistoricidade (a-historicidade) em relação ao continente, importante mencionar aqui o olhar enviesado do filósofo alemão Friedrich Hegel (1770-1831), que declarou em suas lições sobre a Filosofia da História Universal, que a África não possuía “interesse histórico próprio, senão o de que os homens vivem ali na barbárie e no selvagismo, sem aportar nenhum ingrediente à civilização”. Desta forma, a autora põe em suspenso conceitos oriundos de uma linha de pensamento ocidental, que perpassa a antropologia funcionalista de Bronislaw Malinowski (1884-1942) e Radcliff-Brown (1881-1955), teoria que consiste em pensar as instituições a partir das suas funções sociais, no mais das vezes, sem levar em contas os aspectos das culturas locais. Reside aí o legado do “fato social” de Émile Durkheim, na sua configuração mais teórica e cientificista, aos trabalhos de Brown. Desnecessário dizer que tais teorias não são nenhum pouco condizentes para a análise das inúmeras etnias presentes em África. Enfim, o conhecimento apronta das suas, visto que a universalidade acabar por esconder as particularidades locais. Conforme diria Léon Tolstoi, “Quer ser universal, cante com a aldeia”.
A autora também alerta-nos acerca do aspecto extremamente colonialista da Conferência de Berlim, em fins do século XIX e início do XX, que partilhou a África entre as potências européias, sem ter em conta as peculiaridades locais, fruto do empreendimento imperialista e neocolonialista que, tempos depois, desencadeou nas duas grandes guerras mundiais. Leila Leite também enfatiza a importância das tradições orais para o estudo da África.
Na segunda parte da obra, é problematizada a questão do colonialismo, tendo em vista os instrumentos de luta de dominação: expansionismo, burocracia colonial e racismo. Aqui as “diferentes cabeças” do empreendimento colonial ganham maiores contornos, considerando-se os distintos tentáculos do colonizador, a partir dos quais a África foi reduzida à fornecedora de matérias primas aos países do centro numa dinâmica extremamente aviltante para com os valores humanos, o que levou Hannah Arendt  a classificar o imperialismo colonial como uma pré-figuração dos fenômenos totalitários do século XX, a exemplo do nazismo e stalinismo. A meu ver, se  Hernandez se apoiasse em Aimé Césaire (Discurso sobre o Colonialismo), cuja obra está presente na bibliografia do livro que se quer resenhado, teria elementos mais consistentes para estabelecer o paralelo entre aquilo que Arendt chamou de “pré-figuração” do totalitarismo na sua configuração nazista e stalinista e o totalitarismo propriamente dito, visto que Césaire faz uma crítica ferrenha à relevância que é dada às atrocidades cometidas no entreguerras em detrimento ao empreendimento neocolonialista em África e nas chamadas periferias do capitalismo, que foi tão violento quanto, isso sem mencionar o grande contingente de africanos que lutaram na linha de frente dos exércitos coloniais, defendendo uma pátria que lhes eram alheia. Lembrando Césaire, “É permitido matar na Indochina, torturar em Madagáscar, aprisionar na África Negra, e reprimir nas Antilhas”. Essa crítica foi escrita em 1955.
Entretanto, Hernandez traz um interessante contraponto, referindo-se aos distintos movimentos de resistência existentes em todo o continente contra as investidas do colonizador, a exemplo da luta dos sudaneses, egípcios e somalis contra o imperialismo britânico.
A parte terceira, que abarca o sexto, sétimo e oitavo capítulo, centra-se no papel desenvolvido pelas elites culturais diante da política e da questão da identidade, processo esse que dá ensejo à formação da consciência nacional, pautando-se em ideias elaboradas por diferentes correntes de pensamentos que foram de encontro aos preceitos engessadas made in Europa. Em diálogo com outros autores, Hernandez mostra como a categoria genérica “raça” foi moldada através de um saber europeu de fins do século XVIII e reforçado no XIX, na esteira evolucionista e do darwinismo social levado a cabo por Herbert Spencer (1820-1903), que aplicou à sociologia ideias provenientes das ciências naturais. A esse respeito, assinala Hernandez:

O significado desse ‘binômio’ composto pelas raças branca e negra não se encerra, é óbvio, nos limites de uma simples antítese. Antes, tem o efeito de inspirar a seguinte dúvida: teriam o branco e o negro a mesma origem? É bom lembrar que essa questão integra o narcisismo europeu e sua busca de fronteiras entre ele e o outro, colocando, portanto, o tema da alteridade” (p.132).

Nesse processo de formação de desenvolvimento de uma consciência nacional, conforme observado pela autora, destaca-se o papel de intelectuais e membros da elite africana, bem como o ganense Kuame Nkrumah (1909-1972), que enxergou na união africana uma possibilidade de superação dos limites impostos pela violência neocolonialista. Daí ser Nkrumah um dos principais articuladores do chamado Pan-africanismo – no seu dizer - “A África para os africanos”. Resumo da ópera: o “pan-africanismo parte da preocupação de constituir uma identidade de destino de um conjunto de povos frente à burocracia colonial e às experiências colonialistas. Face a isto, a partir do ideário pan-africanista, criou-se um série de conferências e congressos para discutir a inserção das nações africanas no cenário internacional, tendo em conta a recomposição política da África pós-Conferência de Berlim. No bojo desse processo surge, igualmente, nos anos 1930, um movimento encabeçado pelos pensadores Aimé Césaire (Martinica), Leopold Sedar Senghor (Senegal) e Léon Damás (Guiana Francesa), que consistiu em pensar a identidade negra a partir de valores comuns fazendo frente ao racismo das instituições francesas do período. Interessante notar que, muito embora, a negritude tenha sido idealizada por intelectuais da diáspora e da África francófona, ela se irradiou para outras paragens. Também é mencionada a Conferência de Bandung (1955) (Conferência Governamental Afro-Asiática), que consistiu no encontro entre nações africanas e asiáticas, onde esses países optaram pelo não-alinhamento, buscando não se inserir na arena bipolar ideológica dominada pelos EUA (1º mundo) e URSS (2º mundo). Advém daí a disseminação do termo terceiro mundo, elaborado anos antes (1952) pelo demógrafo francês, Alfred Sauvy, em artigo intitulado Trois monde, une planète, em alusão ao Terceiro Estado (povo) da Revolução francesa. Em Bandung, os países signatários, a partir de laços assimétricos e interesses comuns, buscaram regulamentar conflitos por meios pacíficos, pensando na representatividade das respectivas nações no cenário internacional. Haja vista que dez anos depois, à conferência se somaram as nações latino-americanas. Esse era o preço a ser pago pelas potências, tendo em vista a forma arbitrária que estas conduziam os conflitos nas chamadas periferias do capitalismo. Na década de 1960, já amadurecido esses diálogos, observa-se o efeito em escala das independências das nações africanas, conforme exposto pela autora na última parte da obra.

*Professor de História da Uniban/Anhaguera da unidade Campo Limpo- Vila Mariana e pesquisador do Cecafro-PUC-SP e da Cinemateca Brasileira.

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